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O Observatório da Criptografia (ObCrypto) entrevistou Paulo Rená, professor de Responsabilidade Civil e Direito, Inovação e Tecnologia no Centro Universitário de Brasília – CEUB, pesquisador bolsista do Instituto de Referência em Internet e Sociedade – IRIS e ativista voluntário no AqualtuneLab: Direito, Raça e Tecnologia. A entrevista tratou do perfil político e tecnológico do Telegram, plataforma de mensageria de origem russa em plena ascensão no Brasil e, recentemente, alvo de questionamentos sobre sua  política de moderação de conteúdos e sobre seu grau de aproximação com autoridades públicas brasileiras. As respostas a seguir expressam sua visão pessoal, e não refletem nenhum posicionamento institucional.

Pergunta – Quais são as particularidades técnicas do Telegram que seria necessário observar e até que ponto se relacionam com seu trabalho de moderação de conteúdo?

Resposta – A moderação do Telegram é bem específica e bem diferente em relação, por exemplo, ao WhatsApp e a como a conversa vinha se desenvolvendo especialmente no Brasil. Então acho que nesse ponto é muito relevante entender que o Telegram não surge como um uma empresa querendo concorrer com o WhatsApp, simplesmente um novo entrante. Na verdade, o Pavel [Durov, CEO do Telegram], que é o criador, era um dos donos da VK que é a maior rede social na Rússia, que é um dos poucos países onde o Facebook não é a maior rede social. E o VK é uma empresa comum, que tinha ações e que foram compradas pelo governo russo, que passou a interferir na definição do conteúdo em função de ser seu sócio majoritário. O Pavel ficou incomodado com essa situação especificamente e saiu, vendeu o que ele tinha de propriedade. Isso foi como se o Zuckerberg juntasse o dinheiro que ele ganhasse saindo do Facebook para fundar o Telegram. Então é uma empresa que foi fundada para não ser sujeita ao controle de governos. Enquanto as pessoas pensam que o Telegram tem princípios agora, mas depois vai ceder aos governos, eu pessoalmente acredito piamente que o Telegram tem algo de diferente no aspecto de ser uma empresa voltada para garantir uma liberdade de expressão e uma uma isenção com relação ao governo. Acho que isso existe. Enfim, eles não têm sede de verdade, estão sediados em Dubai. Tem uma sala com uma secretária, mas os servidores mesmo estão em lugares não revelados.

Isso traz uma questão: a gente precisa regular as plataformas? O Telegram tem um protocolo de criptografia que é altamente questionado pela comunidade por  partir de  um protocolo próprio de criptografia e não se construir a partir de um protocolo já existente. Também há essa ideia de que, ao mesmo tempo, eles têm uma criptografia de ponta a ponta que se coloca como robusta apenas no chat secreto. Há afirmações de que exista proteções criptográficas entre as demais conversas, que não garantiriam o sigilo em relação ao intermediário, mas que garantiriam contra um “ataque do homem do meio” (man in the middle). Então teria alguma proteção também por criptografia, mas não uma que se possa chamar de criptografia forte. Isso é questionado pela própria comunidade técnica. Precisa ter uma regulação mundial que possa ser utilizada para cobrar do Telegram uma outra postura? Eu acho que sim. Mas essa regulação, ao meu ver, não pode ser realizada país a país, senão ela vai ser ineficiente. Essas particularidades do Telegram me convencem dessa ineficiência porque particularmente ele é dedicado a se desviar dessas influências do governo. Mas esse tipo de resistência não só o Telegram, não é?

Em relação à questão que se tem colocado de exigir sede no país: exigir sede de um país que só tem sede formal em Dubai é um tiro no pé. Seria uma legislação ineficiente. O WhatsApp ter representação no país não inibiu a disseminação de fake news, ao meu ver. O WhatsApp tem colaborado, não é uma empresa que não colabora, mas a empresa de serviço online não é um serviço público de telecom sob concessão que tenha que seguir o Art. 222 da Constituição, que exige que a empresa tenha sede no país. Eu acho que isso não faz sentido não só para o Telegram (que tem essa postura sigilosa), mas tampouco para a Internet de forma geral. O Der Spiegel tem sede no Brasil? O Washington Post tem sede no Brasil? Vamos imaginar que o Washington Post não tem uma sede no Brasil e faça revelações sobre o Brasil e publique mensagens de autoridades. Ou então a Fox News. Vamos bloquear o acesso à Fox News ou plataformas digitais? O Discord, Reddit, Hootsuite, o Jitsi, o Proton Mail? Imagine que o ProtonMail também não colabore com governos quando as discussões envolverem persecuções criminais. O Signal não sei se tem sede, o Slack, o Doodle, usado para marcar reuniões, ou ToDoist ou WordPress. Caso exista uma plataforma ótima de publicação online, que não tem sede no Brasil, com todo mundo usando hoje em dia, vai proibir de acessar? É esse o caminho? Isso vai acontecer nos 193 países? Cada um bloqueando o serviço? Toda empresa de internet tem que ter 193 sedes? É inviável.  Ah não, mas o Brasil é grande. Sim, o Brasil é grande, mas pode não ser o mercado de uma empresa e ter um nicho de brasileiros que usa aquele serviço.

Tem mais uma especificidade sobre essa fuga do Telegram da Rússia. Eles inclusive se tornaram símbolo: o “avião de papel deles” [a logo do Telegram] deu ignição ao episódio em que as pessoas passaram a protestar contra o governo russo atirando avião de papel como simbolização de o Telegram servir como meio de contraposição ao governo Putin. Assim, ele não cedeu a uma imposição de um sujeito que é o símbolo de autoritarismo. É o “o Estado sou eu” moderno. Então, se esse cara desafiou o Putin, e aí se o Bolsonaro ou o Lula bloquearem o Telegram, o aparecimento de dicas para acessar o Telegram por uma VPN será trivial (e não exatamente seguro). Ainda, eventualmente, isso atrapalhará o acesso ao Telegram na Argentina, no Uruguai, no Paraguai, como já aconteceu outras vezes com os bloqueios do WhatsApp e do YouTube. Então eu acho que o Telegram tem muitas ferramentas, muitos recursos tecnológicos, mas essas especificidades do Telegram trazem pra ele uma conjuntura que deixa mais evidente alguns aspectos e desafiam, de forma mais frontal, algumas questões, por exemplo, do TSE. Eu não diria que ele é uma plataforma “sem lei”,nem que a solução é fazer uma regulação nacional. Eu acho que tem que ser como a gente tá fazendo, propondo uma concertação no PL 2630 [“PL das Fake News”],para que se tenha espaço dedicado a ouvir os dissensões e tentar construir consensos mínimos, em torno de  específicas, mas sempre com um olhar multifacetado. Acho que isso deve acontecer em mais espaços na ONU ou recuperar o que foi perdido com o “NETmundial”. A gente está indo para dez anos do NETmundial sem nenhuma perspectiva de uma segunda edição. Eu quero dizer que a perspectiva da governança da Internet é se manter na mesma lógica.

P – Sobre a exigência de ter sede no Brasil, você acha que o Telegram poderia, diplomaticamente, aproximar-se de autoridades no Brasil e nos países que dialogam com suas diretrizes institucionais de respeito aos direitos humanos?

R – Eu pessoalmente não sei exatamente se eu concordo ou discordo ou se eu faria diferente, mas eu compreendo completamente o Telegram se privar de estabelecer qualquer tipo de comunicação institucional com qualquer país. Mesmo com os países em relação aos quais ele vê uma visão mais democrática no momento. Fazendo um comparativo, vamos supor que em 2009 ele fizesse algum tipo de contato com o Brasil e tivesse um representante no país. E aí, dez anos depois, a situação é completamente outra. Eu imagino que hoje, até por isso, o Pavel se coloca muito como persona do Telegram e ele consegue, digamos, se proteger. Uma pessoa só e, enfim, se resguardar de eventuais escândalos, perseguição etc. Se o Telegram fosse estabelecer dez representantes que fossem para América Latina, América do Norte, Europa ocidental, Europa oriental e Rússia, seriam várias janelas para questões serem levantadas de “o que essa pessoa já falou, onde ela já trabalhou, de onde ela vem”. E isso, enfim, de alguma forma daria alguma pista de onde eles estão. Então eu acho que é coerente, com o esforço que eles fazem, eles não terem relações diplomáticas e se ocuparem bastante assim. Mas talvez fosse um movimento interessante aceitar contatos para algum diálogo mais transparente, pelo menos, ainda que sem identificar indivíduos que falassem em nome deles. 

Acho que o Telegram é a plataforma que, para mim, hoje representa o que eu acho de mais alinhado com a defesa da liberdade na Internet. Mesmo entendendo que ela não é perfeita, acho interessante a forma como ela reage às questões.

Ainda assim, no campo da diplomacia, o Telegram, por exemplo, afastou um bot nas eleições da Rússia no período de boca de urna. Tinha um bot que permitia que os eleitores da oposição ao Putin votassem e registrassem o seu voto para ter uma ideia de uma disparidade entre essa votação do Telegram e a votação oficial. O Telegram desativou esse bot nos dias finais da campanha no entendimento de que ele é boca de urna, como a lei russa diz. Isso é uma regra antiga, como é no Brasil também a vedação da boca de urna e de divulgação de pesquisas nos últimos dias. 

Então eu acho que, tecnologicamente, é viável que o Telegram tenha algum tipo de resposta. Eu acho que esse é um caminho possível que pode ser, por exemplo, como bloqueio de redes de exploração sexual infantil, bloqueio de redes do Estado Islâmico, questões de direito autoral, como vídeos do Big Brother que certo canal divulgava – a Globo reclamou e o Telegram retirou. Eu sou contra a legislação de direito autoral do Brasil e da Convenção de Berna, os tratados triplos que estão vigentes hoje. Mas eles estão vigentes. E o Telegram seguiu a regra vigente no mundo inteiro, de que o detentor do direito autoral reclama e você pode retirar, até espécie de postura de “porto seguro” como a legislação estadunidense apregoa. 

P – Em termos técnicos, o Telegram poderia fazer alguma alteração em sua arquitetura para mitigar a disseminação de desinformação? 

R – Não sei qual seria a melhor forma de o governo fazer essa solicitação, mas talvez caberia buscar essa solução tecnológica porque é algo que o Telegram até, talvez, possa fazer de forma localizada. O Telegram fazer de forma pontual. Em vez de o Brasil tentar bloquear genericamente todo o Telegram, o próprio Telegram, de alguma forma, pode tentar limitar algum bot, algum canal direcionado específico. E aí cai em um outro problema, que é o PL nº 3227, a antiga Medida Provisória nº 1.068 – aquele decreto que nunca existiu de fato, só a proposta – a respeito dos limites para a moderação de conteúdo. Eu acho que está no direito das empresas realizarem essa moderação da forma que elas quiserem, sem terem que pedir autorização para realizarem. Onde houver violações de direitos, o Poder Judiciário impõe sanções civis de obrigação de fazer e indenização, mas jamais de bloqueio. Acho que jamais de bloqueio porque o bloqueio não resolve, ao meu ver. Não resolve para exploração de imagem infantil bloquear a rede, não resolve contra fake news, não resolve contra discurso de ódio. Acho que têm outros caminhos possíveis de sanções menos drásticas e que se mostrariam juridicamente mais eficientes: advertência, multa, constrição patrimonial, restrições comerciais, etc. Não só tecnologicamente, mas de proteção dos direitos e de efetiva garantia e afirmação dos interesses de quem é titular.

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