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André Ramiro e Pedro Amaral

Com a proximidade das eleições de 2022 e os aprendizados sobre a desinformação em aplicativos de mensagem privada em 2018, o Telegram se vê sob uma cruzada de coberturas midiáticas que o pintam como “terra sem lei” e permissiva ao extremismo. Até que ponto essa abordagem observa as nuances políticas e técnicas do aplicativo no contexto da regulação de plataformas?

A cada ano, novas aplicações tecnológicas se destacam no campo das atividades políticas na rede. Recursos das redes sociais, por exemplo, são profundamente explorados a fim de que seja extraído melhor proveito da comunicação e das redes online – repercutindo na reformulação das regras de uso, políticas de privacidade e mecanismos de transparência para responder aos novos desafios dos provedores diante do jogo político eleitoral. O mesmo ocorre com aplicações de mensageria privada que contam com criptografia, trazendo novas oportunidades políticas em função da segurança e sigilo nas comunicações e, ao mesmo tempo, obstáculos em função de usos indevidos, como as campanhas de desinformação. 

Nesse sentido, o Telegram, de origem russa, tem sido recentemente descrito como uma “terra sem lei” e o “potencial vilão das eleições de 2022”. A preocupação é herdeira da experiência eleitoral de 2018, quando o WhatsApp, líder de usuários no Brasil, foi habilmente usado para disseminar massivamente conteúdos de campanhas eleitorais em todo o Brasil. Isso inclui os esforços de desinformação que continuaram e continuam ao longo da pandemia de Covid-19, com a promoção de tratamentos inexistentes para a doença ou mesmo com campanhas anti-vacina em todo o mundo.

A “popularidade política” do Telegram chama atenção em função da migração das autoridades para esse serviço, como fez Jair Bolsonaro, que chega a incitar sua rede a migrar para a plataforma. Desde que migrou para o Telegram, no início do ano, o canal do presidente alcançou mais de um milhão de inscritos, uma diferença incomparável em relação a outros candidatos à presidência. Além disso, o aumento de usuários do Telegram também se relaciona aos problemas que o WhatsApp enfrentou com os bloqueios por decisões judiciais. Atualmente, estima-se que o Telegram está presente em cerca de 53% dos smartphones no país. 

O trauma politico

Com o Telegram em foco, analistas vêm avaliando suas políticas de uso. Matéria da Folha de S. Paulo sustenta que Telegram será a nova “terra sem lei” nas eleições de 2022, como “teria sido o WhatsApp em 2018”, com desinformação e disparos em massa, principalmente em apoio ao então candidato Jair Bolsonaro. O Telegram, além disso, seria “impenetrável” e não dialogaria com as instituições públicas, como o Tribunal Superior Eleitoral. Isso seria reforçado por suas permissões técnicas aos usuários, que oferecem capacidade de alcance muito maior para os fóruns de discussão (até 200 mil membros) e listas de transmissão (sem limites). 

No mesmo sentido, matéria veiculada no O Globo chama atenção para “ilegalidades em série” praticadas no aplicativo, incluindo “pornografia infantil, vídeos de tortura e execuções, apologia ao nazismo, comércio ilegal e uma rede de desinformação sobre vacinas”. A aplicação é pintada como “deep web pronta-entrega” e mudaria constantemente de jurisdição para evitar problemas regulatórios, conferindo um “absoluto anonimato para formar sua comunidade à margem da lei”. A abordagem ressoa, por exemplo, em matérias do El País e da ISTOÉ.

Além de uma busca exclamativa pelo alarme – semelhante a reações policiais à expansão da Internet na década de 90 –  a abordagem das matérias é sugestiva de um claro “trauma” político causado pelo uso indevido de variadas aplicações em campanhas eleitorais no Brasil. No entanto, nuances precisam ser conferidas à “criminalização sumária” do Telegram e de seus usuários, uma qualificação necessária do ponto de vista da política nacional e mesmo quanto às funcionalidades e à arquitetura da plataforma, características que, na prática, vão além do estigma.

Nuances necessárias à análise do Telegram

Inicialmente, encarar o Telegram (ou qualquer outra plataforma de uso em escala global) a partir de frações de seus usuários, um “todo pela parte”, mantém graves pontos cegos quanto à multiplicidade de usos da aplicação e a seus recursos fundamentais. Em atividade desde 2013, a plataforma tem sido uma alternativa recorrente e contribui para a pulverização de serviços de mensageria, celebrada, por exemplo, por ter seu código aberto, uma boa prática de auditoria pública do software que favorece a transparência do serviço e a manutenção de um nível de segurança continuamente verificado por uma comunidade global de analistas. 

Falar em colaboração de plataformas com agências governamentais merece uma contextualização histórica que tem, como pano de fundo, uma cultura de compartilhamento de dados pessoais e conteúdos de comunicações com autoridades públicas de forma desproporcional. Ao longo da última década, foram continuamente relatados os padrões baixos de observação à proteção de dados de usuários por empresas como o Google, Facebook e Amazon quando da cooperação com agências de segurança pública (cujo estopim foram as revelações de Snowden). O Telegram surge desse tensionamento e, costuma-se dizer, alimenta uma cultura (atualmente posta em questão) de se filiar aos direitos de seus usuários.

Em países conhecidos por sua postura autoritária em relação às redes sociais e aplicações de mensageria, como a China e Rússia, plataformas que não se curvam, por exemplo, à obrigatoriedade de reduzir a força da criptografia empregada nas aplicações ou em não compartilhar continuamente dados em massa de usuários com o Estado – o que resulta em ampla violação à privacidade e censura à atividade política – respondem judicialmente perante o Estado. Como resultado, o Telegram tem buscado outras jurisdições para abrigar uma plataforma mais protetiva à liberdade de expressão. É possível dizer que os limites dessa liberdade devem ser, certamente, discutidos em contínuo debate público, sobretudo conjunturas políticas marcadas por radicalismo, desinformação e discursos de ódio, como atualmente no Brasil.

O que as matérias acima citadas se referem como “terra sem lei”, problematizando a jurisdição à qual o Telegram obedece, já foi considerada um alicerce protetivo e impulsionador de protestos populares em países conhecidos por se afastarem de modelos políticos democráticos. A exemplo do uso do Twitter nos movimentos Occupy, a plataforma foi fundamental para a mobilização de grupos que necessitavam de serviços de mensageria privados para escapar da violência policial e efetivamente conduzir manifestações, como por exemplo, ocorreu na Bielorrússia em 2020. 

Também não é inteiramente verdade que o provedor esteve completamente distante das autoridades de segurança pública. Em 2019, foi documentada a cooperação do Telegram com a Europol no combate ao terrorismo em suas redes. Nas palavras da agência, “a empresa tem se esforçado consideravelmente para erradicar aqueles que abusam da plataforma ao fortalecer suas capacidades técnicas para combater conteúdos maliciosos e estabelecer estreitas parcerias com organizações internacionais como a Europol.” Da mesma forma, sob alegações de pirataria, canais na plataforma foram derrubados por solicitação de grandes corporações de comunicação no Brasil. São precedentes que devem ser levados em consideração.

A soma dos fatores

Dito isso, é certo que o Telegram (que não é, nem de longe, perfeito) deve continuamente reforçar suas práticas tecnológicas e sua resposta a políticas públicas como forma de se manter atualizado quanto aos desafios que seus usuários – e a sociedade como um todo – colocam quanto às possibilidades de uso da aplicação.

A escalada da desinformação e dos discursos de ódio – que pedem uma releitura social contínua e desafiam as interpretações jurídicas sobre a liberdade de expressão – em aplicações de mensageria, por exemplo, sugere que plataformas dessa natureza podem mirar em mitigações de riscos derivados de modelos de comunicação em massa – os quais, consequentemente, pedem uma moderação de conteúdo mais responsiva e complexa. Logicamente, moderação de conteúdo e aplicações de mensageria privada são elementos que se excluem mutuamente do ponto de vista da privacidade, pois implicaria em uma observação constante das comunicações e, como consequência, um cerceamento da liberdade de expressão. O Telegram se vê, portanto, diante de uma encruzilhada. 

Da mesma forma, é grande a demanda para que o Telegram implemente criptografia ponta-a-ponta por padrão para seus usuários, protocolo considerado essencial para os regimes modernos de proteção de dados e sigilo das comunicações. Essa tendência sobre a segurança nas comunicações também deverá ser observada pela plataforma. Um modelo que envolva moderação de conteúdo, igualmente, impede que esse avanço ocorra. Portanto, a criptografia é uma peça chave no quebra-cabeça das relações entre o Telegram e os impactos políticos do uso da plataforma. 

Na medida em que uma plataforma passa a ser central para atividades cotidianas e, sobretudo, para a efetividade e operação de ações políticas populares, a mesma deve estreitar, crescentemente, seus mecanismos de diálogo com instituições democráticas de forma a fortalecê-las. É desejável que plataformas de alcance global, como redes sociais e aplicativos de mensageria, aproximem-se da sociedade civil organizada e de instituições públicas de forma a internalizar demandas e desafios sociopolíticos e tecnológicos que poderão sofisticar a estabilidade das relações multissetoriais e a efetivação dos direitos humanos, como a privacidade, a liberdade de expressão e a participação cívica em processos eleitorais.

Conclusão

A busca por explorar o medo e a indignação moral é um recurso tradicional para conquistar atenção e engajamento. Esses são argumentos levantados por autores como Tim Wu em “The Attention Merchants” ou Frank Furedi em “How Fear Works”. Ao invés de comprarmos esse pânico moral com os aplicativos de mensageria, seja qual for, devemos examinar devidamente as diversas questões envolvidas. Como aponta o pesquisador Paulo Rená, a linguagem empregada pelas matérias acima citadas chama a atenção e apela para a ideia da Internet como reino da impunidade, uma abordagem não informativa ou cuidadosa para abrir espaço à construção de entendimento qualificado do ponto de vista de possíveis políticas públicas. Por outro lado, demandas regulatórias parecem surgir na superfície do debate público e tangenciam aplicações de mensageria.

Essas questões devem ser tratadas com ferramentas analíticas cuidadosas, na esteira dos amplos debates públicos sobre regulação de novas tecnologias que vêm sendo travados no Brasil ao longo da última década e que resultaram em legislações mundialmente referenciadas, como o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados. Enquanto busca-se lidar com os impactos da desinformação e seus efeitos na democracia brasileira, é necessário não perder de vista a garantia de direitos individuais e coletivos como a segurança, a privacidade e a liberdade de expressão.

O Telegram, portanto, insere-se nesse contexto e parece orbitar para o centro das atenções para as eleições no Brasil em 2022. Será preciso observar – afastando o discurso criminalizante e alarmista – com cautela suas características técnicas e, ao mesmo tempo, a cultura e o conjunto regulatório brasileiros para o melhor interesse do usuário final: o cidadão. 

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