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Pedro Lourenço, pesquisador do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec)

Tecnologias digitais não são ferramentas neutras. Ambientes virtuais não estão apartados das disputas de poderes do mundo real. Essas constatações, já bastante aceitas na atualidade, representam a superação de um utopismo cibernético que enxergava a Internet como um espaço aberto e democratizante, onde a informação seria livre, as fronteiras seriam enfim superadas e os humanos poderiam concretizar todo seu potencial comunicativo e colaborativo. Tal idealismo, gestado a partir da popularização dos computadores pessoais e da Internet nas décadas de 1980 e, principalmente, 1990, morreu na praia do século XXI. De acordo com Jürgen Habermas, a maioria dos projetos de futuro gestados na modernidade mostraram-se extremamente frágeis. No texto “A Nova Intransparência” [1], publicado em 1985, o filósofo aponta que a esperança já dava lugar à perplexidade e ao temor desde o século XX, ameaçando as energias utópicas da sociedade.

O depósito do desejo de ampla conexão humana nas tecnologias digitais surge justamente da constatação de que os meios de comunicação de massa não democratizaram a informação, mas sim ergueram oligopólios midiáticos. Se o rádio, a televisão e as mídias impressas não foram suficientes para superar as desigualdades no acesso ao conhecimento e à expressão, outras tecnologias, novas, o fariam. Embalados pelas contraculturas da segunda metade do século passado, os utopistas cibernéticos plantaram no mundo virtual as esperanças que não tinham vingado no analógico.

Mas apesar das visões um tanto idílicas, os idealistas digitais entenderam bem cedo que nenhuma liberdade viria sem luta. As forças do capital e do Estado, enxergando também o enorme potencial das novas tecnologias da informação e comunicação, articularam-se para constranger ou colonizar a nova realidade digital – algumas vezes como parceiras, em outras como rivais. Era necessário organizar-se para que o projeto de livre desenvolvimento e acesso pensado para a rede mundial de computadores não se convertesse em mais um sonho de futuro capturado por interesses políticos e corporativos. 

O nascente ciberespaço foi palco de experiências colaborativas de intercâmbio de conhecimentos e estabelecimento de conexões. Entre os agentes que engajaram-se nas diversas tarefas de construção e manutenção das ferramentas digitais, destacamos aqueles que estiveram mais envolvidos no desenvolvimento de tecnologias e ações de proteção e privacidade.  Nem todas essas ferramentas surgiram no ambiente aberto das redes – muitas foram produzidas por empresas, governos e pesquisadores universitários –, mas a sua ampla disseminação, sem dúvidas, ocorreu graças à Internet e aos códigos abertos. Assim entram em cena os hackers, tradutores dos métodos de ação direta para o ciberespaço. Surgem também a criptografia como a conhecemos hoje e seus partidários, os cypherpunks. Guiados por valores e códigos de ética próprios – o que não poupou-os de enfrentar conflitos internos e contradições –, esses rebeldes foram os primeiros a articular formas de resistência na e a partir da Internet. 

Os anos 1980 e 1990 assistiram com certo deslumbre a ascensão do ciberespaço. As promessas de liberdade, conexão e agilidade exponencialmente maiores inspiraram a cultura de forma ampla, levando à elaboração de uma cibercultura que ia muito além das telas dos computadores. Ela tinha um tanto – ou bastante – de especulação e ficção, representava um presente e projetava um futuro tecnicamente ainda inviáveis. A ampla conexão, já celebrada, só era acessível de forma satisfatória para uma pequena parcela da população mundial, em sua maioria pertencentes às classes mais favorecidas do Norte Global. As novas subjetividades possibilitadas por um mundo sem fronteiras traziam uma enorme coincidência de contornos com as identidades tidas como “universais” já estabelecidas: brancas, masculinas, anglo-eurocêntricas. Os discursos contra-sistêmicos dos hackers, cypherpunks e outros rebeldes digitais foram esvaziados e amalgamados às estéticas das subculturas jovens do fim do século, pintadas com as tintas pessimistas e ameaçadoras do cyberpunk, subgênero da ficção científica.

A utopia cibernética que faliu nos anos 2000 e 2010 foi justamente a da sociedade hiperconectada livre de contradições e dos hackers de óculos de sol em quartos escuros. O otimismo em relação à Internet não se sustentou diante de um ambiente digital crescentemente dominado pelo corporativismo e pela vigilância. E o entendimento dos rebeldes cibernéticos como os grandes vilões ou anti-heróis do mundo informatizado não deram conta de apreender as verdadeiras ameaças que emergiam. A resposta vigilantista do governo americano ao 11 de setembro e a capitalização dos dados nas plataformas digitais mudaram o paradigma da rede. A luta pela privacidade e liberdade no ambiente digital ganhou novo fôlego, atualizou suas pautas e inspirou novos agentes.

A revelação, feita por Edward Snowden e pelo WikiLeaks em 2013, de que as agências de investigação dos EUA estavam promovendo vigilância digital massiva a nível global deflagrou um novo momento das Crypto Wars [2]. As “batalhas” anteriores, travadas desde os anos 1970, giravam em torno da oposição aos esforços dos governos para conter o desenvolvimento da criptografia, controlar seus usos, contorna-la e quebrá-la. Os cypherpunks voltaram ao fronte para conter a espionagem irrestrita do Estado e combater a prática, empregada pelas big techs, de coletar e tratar dados massivamente.

Concomitante a isso, uma nova onda de protestos articulados pelas redes digitais agitou o planeta. O acúmulo de experiências de luta política que tiveram a participação chave da Internet desde a década de 1990, como o movimento zapatista no México, desembocou em levantes como o Occupy Wall Street, a Primavera Árabe, as Jornadas de Junho de 2013 no Brasil, e os movimentos Me Too e Black Lives Matter. Todos essas experiências de ciberativismo contaram com a disseminação da Internet móvel e dos smartphones, das plataformas digitais e dos veículos alternativos de comunicação.

As novas formas de ocupação das redes e das ruas, as renovadas lutas por privacidade e liberdade no ciberespaço, todas ecoaram a utopia digital dos primórdios da rede mundial de computadores. A utopia anterior à positividade alienada que definiu a cibercultura. O potencial agregador e transformador das redes foi reafirmado. Nesse cenário de rebeldia cada vez mais rico, as experiências de comunicação cresceram em amplitude e relevância. A articulação entre criptografia e comunicação aconteceu de formas diversas, seguindo em ambos os sentidos: tanto a criptografia pôde agir a serviço da comunicação, quanto o contrário. Em todos os casos, a força motriz das lutas resultou na defesa dos direitos humanos fundamentais e dos que se desenharam no novo mundo digital.

Criptografia a serviço da comunicação

A primeira aplicação a destacar-se da criptografia é a da proteção das conversações de jornalistas, ativistas, pessoas que expressam-se politicamente e que fazem denúncias. Poder estabelecer comunicações e armazenar arquivos de forma encriptada amplia as possibilidades de atuar de forma anônima e sem a vigilância e interferência de terceiros. Entre os indivíduos que podem tornar-se alvos políticos, é encorajado o uso de aplicações, principalmente de código aberto, que permitam a troca de mensagens e e-mail encriptados. Além disso, em países onde restringem-se os conteúdos e espaços que a população pode acessar na Internet, o uso de ferramentas como VPN (Virtual Private Network) e rede TOR permite que as pessoas possam contornar a censura e dificultar o rastreamento de suas comunicações. Essas são proteções adicionais aos padrões de segurança da rede que empregam criptografia, que já protegem não apenas jornalistas e ativistas, mas também organizações públicas e privadas, e pessoas comuns.

A garantia de que ambientes digitais e comunicações online sejam invioláveis também é fundamental para populações vulnerabilizadas, como a comunidade LGBTQIA+, mulheres, indivíduos de minorias étnicas e religiosas, e crianças e adolescentes. Ela deve ser entendida como a norma nas ferramentas utilizadas por qualquer pessoa, e, especialmente, por esses grupos, pois os indivíduos pertencentes a eles nem sempre poderão ou desejarão recorrer a meios adicionais de segurança digital. A aplicação de criptografia forte em tais serviços pode impedir ou desencorajar a quebra da privacidade, como observou-se no recuo da Ofcom – reguladora de comunicações do Reino Unido – da intenção, expressa no Online Safety Act, de monitorar serviços de trocas de mensagens com encriptação de ponta a ponta. A ausência de criptografia ou o uso de criptografia fraca, por outro lado, abre espaço para vigilância, ameaças e penalizações. Isso pôde ser observado com a derrubada da legalidade do aborto nos EUA, resultado da revogação da decisão do caso Roe v. Wade pela Suprema Corte. Após esse retrocesso, diversos aplicativos de controle da menstruação com baixo nível de proteção de dados entraram na mira da justiça de diversos estados, pois, através deles, seria possível monitorar pessoas “suspeitas” de cometerem abortos.

A criptografia desempenha ainda um papel mais amplo na proteção de direitos humanos fundamentais, sobretudo aqueles relativos ao acesso à informação e conhecimento, livre expressão e privacidade. Pelo caráter interdependente dos princípios que garantem a vida e dignidade humana, as tecnologias criptográficas são ferramentas fundamentais numa gama muito mais abrangente de direitos políticos, culturais e de segurança. Apesar dos esforços para controlar e enfraquecer esse recurso, presenciados em diversos países desde o final do século passado, várias nações aprovaram legislações que resguardam o direito à privacidade e segurança digital, remetendo ao uso da criptografia para tal fim de forma mais ou menos explícita. 

Pesquisadores de todo o mundo e organizações internacionais, como a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) e a OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), reafirmam a importância da criptografia para a concretização da cidadania na contemporaneidade informatizada. Tais estudiosos e instituições somam-se aos ativistas da segurança e privacidade digital no alerta de que ameaçar o desenvolvimento e implementação da criptografia pode pôr em risco toda a sociedade, expandindo o raio de prejuízos sociais para muito além de alvos políticos,  grupos vulnerabilizados e pessoas que acessam a Internet.

Comunicação a serviço da criptografia

No cenário de crescente protagonismo da TICs nas estratégias de mobilização social, os ativistas da segurança e privacidade online agregaram a larga gama de ferramentas comunicativas para dialogar com seus públicos de interesse. Os diversos canais de comunicação trazem consigo particularidades que indicam as melhores formas de pensar cada produto midiático disponibilizado através deles – tais como público, fatos em voga naquele momento, possibilidades de interação etc. Uma mesma mensagem pode assumir duas, três, inúmeras formas diferentes para engajar eficientemente as audiências. 

Os trabalhos de investigação científica e jornalística emprestaram de forma mais explícita os primeiros moldes aqui destacados, mas os movimentos sociais também apresentam uma sólida tradição de produção de estudos. A condução e divulgação de pesquisas sobre os diversos aspectos da intersecção entre as TICs e a sociedade permitiram que cada vez mais pessoas pudessem acessar esses conhecimentos e agir a partir deles. Não apenas o levantamento e análise de dados realizados pelas próprias organizações ativistas foram fundamentais nesse esforço, mas também a “tradução” dos conhecimentos produzidos por especialistas da área para um público leigo. O olhar atento às grandes e pequenas ações dos diversos atores que podem impactar a criptografia e, por consequência, a privacidade e segurança online e offline, resulta na profusa produção de informações qualificadas que auxiliam agentes políticos e econômicos, acadêmicos, a imprensa e os cidadãos a compreenderem e agirem no debate.

Além de conduzirem investigações e compartilharem seus resultados, as organizações que se empenham na luta em defesa da criptografia também atuam no desenvolvimento e debate de boas práticas no uso da tecnologia, tanto na esfera pública quanto privada, e compartilham-as com entes de diversos setores. Para engajar ainda mais a sociedade no debate sobre privacidade e segurança na rede, os ativistas e pesquisadores têm articulado ocasiões para chamar atenção para a importância da pauta. O CriptoAgosto, o Global Encryption Day (21 de outubro) e as CryptoParties, ou CriptoFestas, são alguns exemplos dessas datas e eventos.

Por fim, os cypherpunks de hoje atuam em diversas frentes para promover pressão sobre as corporações e os poderes públicos. Indo desde a produção de campanhas até o advocacy, os ativistas digitais têm articulado de formas criativas esses esforços com as práticas já mencionadas de disseminação da informação e estabelecimento de conexões. Tais iniciativas têm conseguido frear ou ao menos intensificar o debate em torno dos ímpetos vigilantistas e de capitalização de dados que ameaçam a criptografia. O campo de batalha é, quase sempre, dividido entre aqueles que acreditam que a tecnologia deve ser uma ferramenta para a concretização dos direitos humanos e aqueles dispostos a fazer concessões em nome do “desenvolvimento” e de um “bem maior”. 

A resistência da utopia

Em “Realismo Capitalista” [3], Mark Fisher reflete sobre como o neoliberalismo foi exitoso na tarefa de afogar quaisquer sonhos de projetos alternativos de sociedade. A famosa frase “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, originalmente uma pergunta e subtítulo da obra, exprime bem o estado de desesperança em que os utopistas mergulharam após constatar que não, não há alternativas. O futuro é um lugar desolador e ameaçador, como os autores cyberpunks narraram. A utopia luminosa do ciberespaço, que já se mostrava frágil desde seu início,  recebeu o “golpe de misericórdia” quando os governos transformaram a rede num meio de promover vigilância massiva, e as empresas, em um mercado de dados.

Mas utopias são plurais e, com frequência, opostas. Aquela que propagandeava a Internet como um espaço belo e miraculoso, onde todos os conflitos humanos ficariam para trás, virou pó. Já a outra, a que entendia que era necessário lutar pela tecnologia, teimosamente persistiu. Os ativistas do digital levaram seus ímpetos adiante e irradiaram suas crenças e táticas para outros rebeldes do mundo. Adaptaram-se às transformações do século XXI e reforçaram a compreensão de que a comunicação é uma arma tão poderosa quanto os códigos. Espalharam, entre as muitas outras lutas sociais e futuros sonhados, o ideal de uma Internet usada como ferramenta para promover o humanismo. Para que a utopia se tornasse, enfim, inescapável.


[1] HABERMAS, Jürgen. A nova intransparência: a crise do Estado de bem-estar social e o esgotamento das energias utópicas. Novos estudos CEBRAP, v. 18, p. 103-114, 1987.

[2] JARVIS, Craig. Crypto wars: the fight for privacy in the digital age: A political history of digital encryption. CRC Press, 2020.

[3] FISHER, Mark. Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? São Paulo: Autonomia Literária, 2020.

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