Por: Isabela Inês
É dever de toda a sociedade assegurar às crianças e adolescentes a prioridade absoluta em todos os direitos fundamentais, tais como vida, saúde, dignidade, respeito, lazer e convivência familiar e comunitária. A leitura do art. 227 da Constituição Federal dialoga intimamente com o Estatuto da Criança e do Adolescente, que afirma, em seu art. 4º, que deve-se garantir a proteção dos direitos básicos das crianças, elencando-se um rol exemplificativo que resguarda vários direitos fundamentais diante da vida em sociedade.
Através da “teoria da proteção integral”, o ordenamento jurídico brasileiro, ao aderir às diretrizes da Convenção sobre o Direito das Crianças das Nações Unidas, determina que as crianças e adolescentes se caracterizam como sujeitos de direitos e destinatários de absoluta prioridade, devendo-se respeitar sua condição peculiar como pessoa em desenvolvimento e cuidar de seu bem-estar. Em seus artigos 13 e 17, assegura-se que as crianças possuem liberdade para se expressar livremente, tanto na procura, na recepção quanto na divulgação de informações e ideias de todos os tipos, bem como o direito do acesso das crianças a informações e materiais procedentes de diversas fontes, sejam elas nacionais ou internacionais, uma vez que é uma forma de promoção de seu bem-estar e saúde física e mental.
Presentemente, o contexto da vida social, educacional e familiar da criança e do adolescente se associa ao uso da Internet. Segundo a pesquisa TIC Kids Brasil 2018, entre esse público, 75% das crianças entre 9 e 17 anos usam a Internet mais de uma vez por dia. Além disso, 78% delas afirmam que os pais permitem que, sem supervisão, elas possam enviar mensagens instantâneas. Diante dessa realidade, a UNICEF afirma que uma das formas mais essenciais para garantir o bem-estar das crianças e adolescentes na Internet é assegurando que as indústrias de tecnologia, principalmente as redes sociais, garantam uma plataforma online que proporcione a sua proteção, além de que os governos e setores públicos devem aumentar seus investimentos em tecnologias para promover um ambiente que fortaleça a educação dessa população, recomendações ainda mais relevantes no contexto da pandemia.
Entre os indicadores realçados pela UNICEF para se alcançar o bem-estar na rede, as tecnologias de segurança encontram-se entre os principais recursos. O público jovem precisa encarar o ambiente online como um local capaz de acolhê-lo e elevar sua qualidade de vida. O órgão elenca cinco princípios básicos que devem ser priorizados quando falamos sobre a responsabilidade de proteger esse público: o direito à privacidade e a proteção de seus dados pessoas, à liberdade de expressão e acesso a informações de diversas fontes, a não ser objeto de ataques a sua reputação, à proteção da sua liberdade de expressão de acordo com o seu desenvolvimento e ao acesso de remédios para violações e abusos a esses referidos direitos.
A importância da criptografia
Recurso central para gerar redes de confiança no uso da Internet, a criptografia tem o poder de proteger, de forma holística, os direitos objeto de tutela por parte dos atores responsáveis pela proteção da criança e do adolescente, desde a indústria tecnológica aos setores governamentais especializados: da privacidade e proteção de dados pessoais, passando pela segurança informacional e liberdade de expressão e opinião, os dados gerados pela variedade de comportamentos online são protegidos.
No Brasil, tornou-se popular o uso de criptografia de ponta-a-ponta, especialmente em aplicativos de mensagem. Sua premissa é básica: apenas emissor e receptor de mensagens podem ter acesso ao seu conteúdo, afastando o acesso malicioso, o monitoramento abusivo e outros riscos relacionados à interceptação de mensagens. “A chave pública pode ser compartilhada com qualquer pessoa que queira criptografar uma mensagem para você. A chave privada, ou chave secreta, decifra as mensagens que forem enviadas para você e nunca sai do seu dispositivo. Pense nisso como uma caixa de mensagens trancada. Qualquer um com uma chave pública pode colocar alguma coisa nela e fechá-la, mas apenas você tem a chave privada para abri-la”, afirma Nicole Perlroth, do The New York Times.
Na medida em que é massificado o uso de redes conectadas, consequentemente há uma crescente demanda por segurança da informação. Enquanto isso, ferramentas de proteção à privacidade são cada vez mais necessárias e cobradas por parte da sociedade se considerado o expansivo monitoramento governamental de comunicações, informações dispostas online e a multiplicação de mercados de dados pessoais. Toda a população tem acesso, portanto, a meios de criptografar facilmente suas comunicações, o que torna a cadeia de dados na Internet mais estável e íntegra.
No entanto, o outro lado da moeda sobre o uso de aplicações de criptografia ponta-a-ponta vem sendo capitaneado por agências de investigação e, no contexto da proteção à criança e ao adolescente, com o auxílio de instituições associadas ao combate à exploração sexual infantil. Isso porque a criptografia – como a própria Internet ou outras tecnologias populares – também é utilizada para finalidades ilícitas, não havendo meios de efetuar qualquer controle de acesso. Nesse ínterim, o compartilhamento de material relacionado à pornografia infantil também vem sendo visto, por esses setores, como resultado direto da popularização da criptografia. Mas essa conta não é tão simples. Vejamos o porquê.
Amiga ou ameaça à juventude na rede?
A pedofilia e outras formas de exploração sexual infantil são problemas da mais alta gravidade e devem ser enfrentados com profunda seriedade. Conforme a Children’s Advocacy Center, 12% de todos os sites no mundo contém pornografia e, a cada segundo, US$ 89 são gastos em conteúdo pornográfico. Estamos falando de uma indústria que, apenas no ano de 2019, disseminou mais de 45 milhões de fotos e vídeos online de crianças sendo abusadas sexualmente, de acordo com o artigo de Michael H. Keller e Gabriel J. X. Dance.
Em março de 2019, o Facebook anunciou que iria implementar a criptografia de ponta-a-ponta em seu aplicativo de mensageria, o Messenger, como uma forma de tornar mais segura a ferramenta e sinalizar um comprometimento com a privacidade de seus usuários. Todavia, a notícia não foi bem aceita por parte de agências de investigação e por algumas das organizações de combate à pornografia infantil. Segundo algumas dessas representações, a partir do momento em que houver a concretização dessa medida, criar-se-á uma nova barreira para que as autoridades consigam identificar conteúdos que envolvam abuso sexual de crianças nas redes sociais.
Mais recentemente, a título de enfrentar a exploração sexual infantil, políticas públicas vêm sendo propostas com a intenção de enfraquecer ou “driblar” a criptografia e, assim, fornecer acesso a autoridades competentes aos conteúdos de comunicações. Nos Estados Unidos, a recente proposta do EARN IT Act, por exemplo, é acompanhada de justificativas baseadas no combate à pedofilia. Ao mesmo tempo, no cenário europeu, documentos recentemente vazados sugerem movimentações da Comissão Europeia para que técnicas de filtragem de conteúdo sejam implementadas no uso de aplicações com criptografia. A proposta também se ancora no combate ao abuso infantil, tendo a Comissária Ylva Johansson endereçado a questão como o “problema” da criptografia.
No entanto, considerar a criptografia o centro do problema e investir em meios de enfraquecê-la multiplica ainda mais os riscos à segurança da rede. Para a Internet Society, acabar com a criptografia de ponta-a-ponta para restringir a circulação de “conteúdo questionável” é como resolver um problema criando mil outros, pois, quanto mais inseguras são as comunicações, mais vulnerável fica o usuário a ser vítima de crimes. Mais especificamente, a criptografia é um poderoso recurso aliado no combate à disseminação de informações pessoais também de crianças e adolescentes. A UNICEF reforça que encriptar as informações é uma forma de proteger dados e os direitos humanos da juventude. Além disso, afirma que a encriptação é algo fundamental e garante um “escudo” contra potenciais violações dos direitos desse público em específico.
Ou seja, é uma tecnologia essencial para ir de encontro a práticas criminosas contra crianças no ambiente online: a distribuição de imagens sexuais infantis. Estima-se que o número de imagens de abuso de crianças giram em torno de milhões, distribuídas entre várias plataformas digitais, e o número de crianças vítimas já atingiu a marca de centenas de milhares. Conforme a Global Partnership to End Violence Against Children, estima-se que 750.000 pessoas procuram se conectar com crianças online para fins sexuais a todo instante. Ao empoderar a autonomia e contribuir para a autodeterminação informacional dos jovens, a democratização de recursos criptográficos significa, antes de mais nada, a segurança de que comunicações, imagens, vídeos, áudios e outras formas de interação entre crianças e adolescentes não irão extrapolar o âmbito privado e cair nas mãos de exploradores. Criar brechas em sistemas criptográficos apenas facilitaria a violação da confidencialidade dessas comunicações e colocaria em risco os conteúdos privados.
Segundo Alan Rozenshtein, retirar a criptografia de grandes plataformas, como Facebook, só fará com que os criminosos migrem para um novo serviço ou ferramenta que possua criptografia disponível, o que fará com que a dificuldade dos agentes de investigação persista. O autor também indica que os governos já possuem ferramentas e tecnologias capazes de explorar vulnerabilidades até em plataformas criptografadas, o que levaria a concluir que sistemas do tipo apenas escalariam os níveis de monitoramento em massa de conteúdo em comunicações privadas.
A pseudo-solução
Uma das supostas soluções ao dilema seria a ferramenta PhotoDNA, criada pela Microsoft: um algoritmo criado para verificar automaticamente a existência dessas imagens em várias plataformas. Segundo pesquisadores da UNCAMP, antes do conteúdo ser enviado o aplicativo identificaria imagens de pornografia infantil por meio da utilização de assinaturas únicas de hash, gerando um “DNA” da imagem. Assim, se a ferramenta identificar que essa imagem possui um hash já registrado previamente em um banco de dados com imagens de pornografia infantil, ela recusa seu envio e alerta às autoridades. Propostas dessa natureza vêm sendo associadas a técnicas client-side scanning, ou seja, de filtragem de conteúdo não por parte do provedor do aplicativo de mensageria, mas por uma aplicação independente existente no aparelho celular.
O primeiro dos problemas da suposta solução: quando encontra uma imagem sobre a qual não se tem conhecimento prévio, cria-se uma assinatura hash completamente díspar. Em outras palavras, o aplicativo não vai entender aquilo como uma foto de conteúdo criminoso. A European Digital Rights (EDRi), por ocasião do recente vazamento de documentos, também afirma que algumas questões precisam ser previamente consideradas. A PhotoDNA, segundo a organização, destrói o serviço de criptografia de ponta-a-ponta na medida em que a mensagem só será integralmente protegida se ela for acessível apenas para o destinatário, sem que terceiros acessem o conteúdo.
O comprometimento da criptografia, portanto, dificilmente levaria a uma medida efetiva contra a pornografia infantil, uma vez que atores criminosos poderiam migrar rapidamente para serviços que servem a seus propósitos, enquanto cidadãos comuns, incluindo crianças e adolescentes, perderão proteção crítica contra crimes cibernéticos e vigilância em massa. Entre outras medidas, a organização sugere que haja a publicação de dados específicos acerca do suposto “aumento de conteúdos de pedofilia na Internet em função da criptografia” e que seja revisada a legalidade dessas práticas à luz de seus impactos nas comunicações privadas (principalmente de jornalistas, denunciantes e crianças).
Dessa forma, é possível concluir que quando se lida com o crime de divulgação de material relacionado ao abuso de crianças na Internet, a melhor forma para combater essa prática diretamente é através da ampliação de recursos de segurança. Medidas de caráter emergencial apenas irão abordar o problema de forma superficial – e a curto prazo. É necessário enxergar o emprego de criptografia forte a longo prazo, em contexto com o ecossistema da Internet, com a diversidade de usos e aplicações e com a presença crescente de crianças e adolescentes.