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Raquel Saraiva e Mariana Canto são do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec)

Uma série de preocupações se sucedem após a revogação da decisão da Suprema Corte dos EUA que garantia o direito ao aborto no país. Uma dessas preocupações é com as comunicações digitais e o compartilhamento de dados das pessoas que buscam o procedimento. Mas a criptografia pode ser uma aliada nessa situação.    

Introdução 

Uma série de ameaças aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres vêm sendo feitas nas últimas semanas ao redor do mundo. A revogação da decisão do caso Roe v. Wade pela Suprema Corte dos Estados Unidos, que retrocedeu e tornou ilegal a realização de abortos no país, é uma grande expressão dessas ameaças, já que os Estados Unidos sempre foram considerados o “país da liberdade”. Aqui no Brasil, casos de negação da realização de abortos legais se acumulam, como no recente episódio da menina de Santa Catarina que, grávida aos 11 anos após ser vítima de um estupro, teve que enfrentar um processo judicial para exercer seu direito, sofrendo, inclusive, assédio por parte dos agentes do Judiciário e do Ministério Público que atuaram no processo. Além disso, recentes publicações como a do Ministério da Saúde do Brasil que afirma que “todo aborto é crime” e defende a realização de investigação policial nos casos de aborto que são autorizados pela lei, podem ser consideradas não só extremamente problemáticas mas fontes de desinformação e de cerceamento de direitos.

Todo esse contexto resulta em uma crescente insegurança para mulheres e pessoas com útero no exercício de direitos sexuais e reprodutivos. Com isso, seguiram-se algumas reflexões sobre o que as plataformas digitais podem informar, através da coleta de dados, sobre as mulheres que buscam informações sobre aborto ou mesmo sobre as ativistas envolvidas em movimentos de acesso ao aborto. Esses casos levantam questões sobre quais ferramentas podem proteger as comunicações dessas comunidades e, consequentemente, as pessoas de represálias e perseguições resultantes do exercício desses direitos. 

Roe v. Wade, casos brasileiros e o direito à privacidade

Desde que a decisão Roe v. Wade, da Suprema Corte dos EUA, foi revogada, entidades que defendem a privacidade no ambiente digital passaram a se preocupar ainda mais com o monitoramento de comunicações online no que diz respeito à busca pela interrupção de gestação. No mesmo sentido, entidades que facilitam o acesso ao aborto e clínicas que realizam o procedimento passaram a prestar mais atenção na comunicação com as pessoas que as procuram e com a guarda dos dados referentes aos casos atendidos.

O caso Roe v. Wade foi um litígio judicial ocorrido em 1973, através do qual a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que a Constituição do país protegeria a liberdade individual das mulheres grávidas, dando-lhes a opção de interromper a gestação sem restrição governamental. Após esta decisão, foram revogadas várias leis federais e estaduais sobre o aborto e surgiu um debate a nível nacional sobre o tema, o que remodelou a política estadunidense sobre o aborto.

A decisão permaneceu vigente até 24 de junho de 2022, quando foi revogada também pela Suprema Corte dos EUA através do julgamento do caso Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization, em que o tribunal decidiu que a Constituição estadunidense não confere às mulheres o direito ao aborto e que os estados têm a autoridade para regular os serviços de acesso ao aborto.

A decisão de Roe v. Wade pelo direito ao aborto foi fundamentada na Décima-quarta emenda à Constituição dos Estados Unidos, que, entre outras coisas, trata da privacidade dos cidadãos. A decisão da Suprema Corte, à época, afirmava que o direito à privacidade incluía o direito qualificado da mulher de interromper a gravidez. Agora, justamente o direito à privacidade dessas mulheres está ameaçado por causa da concentração da comunicação em ambiente digital.

Ocorre que, diante da revogação da Roe v. Wade, literalmente de um dia para o outro os serviços de apoio às mulheres e as clínicas que realizam abortos foram considerados ilegais, o que pôs em risco essas mulheres, os profissionais das clínicas e as ativistas pelos direitos sexuais e reprodutivos, além de trazer insegurança sobre o que vai acontecer, considerando que, agora, cada estado pode elaborar sua própria regulação sobre o tema. Qualquer vazamento de dados e conteúdo de comunicações pode levar toda esta comunidade a ser processada e sofrer as sanções cabíveis, o que leva a uma reflexão sobre privacidade e segurança das comunicações e à tomada de decisão sobre como e através de que canais manter essa comunicação.

Isso também se aplica à perseguição que o governo brasileiro vem realizando contra as mulheres e profissionais que praticam aborto legal. No Brasil, o aborto é considerado legal em três situações: em caso de gravidez decorrente de estupro; risco à vida da gestante; e anencefalia do feto. Nessas situações, a interrupção da gestação deve ser feita gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Entretanto, o Ministério da Saúde publicou recentemente uma cartilha em que afirma que “todo aborto é crime” e defendendo a realização de investigação policial mesmo nos casos de aborto que são autorizados pela lei. Tal conduta não só não se constitui como verdade, já que o Código Penal expressamente excetua a aplicação da lei para estes casos (com exceção da hipótese de anencefalia, que é garantida por força de decisão do Supremo Tribunal Federal), como também distancia as mulheres da possibilidade de realizar a interrupção da gravidez. 

No caso da menina de 11 anos de Santa Catarina, que engravidou em decorrência de um estupro e teve seu direito ao aborto negado pela equipe médica do hospital e teve que levar o caso à justiça para conseguir uma autorização para realizar o procedimento, a juíza e a promotora do caso até a removeram de casa, como uma “medida protetiva” para que ela não realizasse o procedimento de interrupção. A menina, que segundo o depoimento da psicóloga que a acompanhava, não entendia a situação, foi afastada de casa e dos cuidados de sua própria mãe por agentes estatais que não queriam fazer cumprir o que diz a lei. Posteriormente, o procedimento foi realizado, mas a promotora mandou a polícia buscar o feto no hospital, mesmo não havendo crime a ser investigado, sob a alegação de que precisava averiguar se houve a aplicação de cloreto de potássio para a parada dos batimentos cardíacos ainda no útero, ou seja, se foi realizada a assistolia fetal, procedimento recomendado para os casos de aborto realizado a partir de 22 semanas de gestação, que era o caso da menina.

Importante lembrar também que este não é o primeiro nem será, infelizmente, o último caso de meninas grávidas em decorrência de abuso sexual. Em 2020 outro caso chamou a atenção do país: uma menina de 10 anos que morava no Espírito Santo e teve seu direito ao aborto negado, mesmo com autorização judicial. Ela foi removida para Recife, onde o procedimento foi realizado. Há suspeitas de que o caso tenha sido vazado propositalmente pela então Ministra Damares Alves, da Secretaria da Mulher, em suas redes sociais, o que suscitou uma disputa ideológica em torno da situação. O caso deveria ter sido conduzido em sigilo, já que se tratava de uma criança, e pela área da saúde, sem nenhuma necessidade de envolvimento da justiça.

Nesse sentido, quando o próprio governo e seus agentes, por ideologia política e religiosa, contrariam a legislação e defendem a perseguição de mulheres e pessoas com útero que estão apenas em busca do exercício de um direito, há que se pensar também na proteção dessas pessoas e das que as apoiam, inclusive com medidas de segurança digital, para que não sejam perseguidas e, eventualmente, penalizadas.

O capitalismo de vigilância e o monitoramento de corpos vulneráveis

O crescimento da utilização do big data levou a mudanças profundas na atual dinâmica de acumulação de dados e especulação comportamental. Como apontado pela Professora Shoshana Zuboff,dados pessoais são capturados, produzidos e reproduzidos com tanta regularidade que sua coleta, utilidade e valor podem passar despercebidos, dando origem ao “capitalismo de vigilância”. Assim, é possível observar formas de exploração na economia de dados, incluindo a ascensão do “poder instrumental”, como definido por Zuboff, a opacidade em torno da coleta e uso de dados e o impacto das violações de dados relacionados aos nossos corpos e a nossa capacidade de funcionar na economia da informação. 

Frequentemente, nos sentimos impotentes diante dos mercados de dados comportamentais. Muitas vezes, por necessidade ou mesmo preferência, fornecemos informações sobre nós mesmos para uma ampla gama de organizações. Entretanto, temos pouca noção de como podemos recuperar ou até mesmo acessar/retificar esses dados. É quase impossível navegar no mundo digital conhecendo e consentindo, de maneira informada, o compartilhamento de dados de nossa escolha. Muitas vezes, perdemos o controle de onde, quando e para quem fornecemos dados sobre alguns de nossos identificadores mais sensíveis, como nossos nomes, datas de nascimento, endereços, estado civil e condições médicas, por exemplo.

Deixamos para trás também, sem o nosso conhecimento, o que alguns chamam de “fumos de dados”, que nada mais são do históricos de busca, cliques e afins. Nos sentimos, muitas vezes, constantemente monitorados a cada toque em nosso cartão de crédito, a cada busca do nosso mapa e a cada ida às lojas. O processo, definido por alguns como “acumulação por doação”, fez com que cada vez mais pessoas se sentissem “usuários usados” por causa da “extração, armazenamento, análise, venda, compra e leilão de dados pessoais não vistos e não autorizados”. 

Para agravar isso, a maioria de nós não tem tempo ou condições para considerar as implicações de nossas escolhas digitais e, quando o fazemos, essas escolhas são altamente individualizadas, fazendo-nos sentir como se a inscrição fosse inevitável, se não obrigatória. Gordon Hull argumenta que o modelo de escolha de autogestão da privacidade é uma forma de responsabilização neoliberal, garantindo que a proteção individual da privacidade falhe de maneira que beneficie as empresas de big data. Essa forma de individualização, atomização e dependência é intencional, assim como os níveis de opacidade.

Atualmente, o Comitê de Supervisão da Câmara dos EUA está investigando diversos aplicativos de monitoramento menstrual a fim de entender como os dados privados de saúde podem ser utilizados de forma a pôr em risco a segurança de seus usuários na era pós-Roe v. Wade. O comitê emitiu cartas aos corretores de dados e aos fabricantes de aplicativos. Nas cartas, os representantes solicitaram informações sobre as políticas de coleta e retenção de dados das empresas, “incluindo documentos e comunicações sobre a produção real ou potencial desses dados a entidades externas voluntariamente ou sujeitas a obrigação legal, como intimação”. Os legisladores também pediram informações explicando as práticas de compartilhamento de dados de cada empresa e quanta receita e lucro essas empresas obtiveram com esses dados em cinco anos. 

Mas os aplicativos de monitoramento menstruais não são a única preocupação de ativistas e defensores de direitos humanos. Outros serviços, aplicativos e ferramentas de busca podem fornecer informações a respeito de onde os usuários vão, o que eles pesquisam na Internet, os sites que visitam, e-mails, mensagens de texto e fotos que enviam e recebem. Mais recentemente, o Google se pronunciou a respeito do caso Roe v. Wade anunciando que excluirá automaticamente os dados de localização em determinados lugares, como aborto ou clínicas de fertilidade. 

Isso deve dificultar o acesso por autoridades a esses dados. Entretanto, evidências potencialmente incriminatórias podem ainda ser encontradas de outras formas. Casos, por exemplo, como o de mulheres acusadas de induzir intencionalmente abortos espontâneos no Reino Unido foram facilitados por meio da análises de textos, pesquisas na Web e e-mails. As evidências foram retiradas dos telefones das próprias mulheres e foram usadas ​​como provas contra elas mesmas. Em um dos casos, a investigada tinha 15 anos. A polícia foi acionada por funcionários do hospital que acreditavam que a adolescente havia ingerido uma substância comprada na Internet para interromper a gravidez. Eles estavam cientes de que ela havia contatado anteriormente uma clínica de aborto para obter informações sobre uma possível interrupção e que não poderia prosseguir porque estava logo após o limite legal de 24 semanas. O telefone e o laptop da adolescente foram apreendidos e examinados em busca de evidências de suposta irregularidade, incluindo mensagens de texto que ela trocou com o namorado expressando preocupação com a gravidez. O caso foi arquivado depois que testes post-mortem descobriram que o bebê provavelmente nasceu morto por causas naturais.

No artigo “Surveilling the Digital Abortion Diary”, a pesquisadora Cynthia Conti-Cook afirma que, em virtude da restrição a serviços de aborto, falta de condições financeiras e também por desejarem mais privacidade no processo, as pessoas grávidas estão mais propensas a lidar sozinhas com os procedimentos do que consultar uma clínica especializada. Ainda segundo a pesquisadora, assim como muitos estadunidenses que desejam um aconselhamento médico, a primeira e óbvia etapa de quem busca um aborto é uma consulta com seu dispositivo digital, que pode levar, por exemplo, a um comerciante de pílulas abortivas ou a uma comunidade de doulas que lidam com aborto. Mas ela alerta que esta simples busca pode deixar um rastro de dados que poderá ser usado caso o dispositivo em questão se torne evidência em um caso sob investigação.

No mesmo sentido, ela ressalta que outros tipos de evidência digital podem ser usados para basear uma investigação, como dados de localização, histórico de navegação, histórico de compras, atividade em redes sociais, dados advindos de dispositivos vestíveis, dados que nós mesmos inserimos em aplicativos e outros dispositivos domésticos conectados à Internet. A autora afirma ainda que tudo isso parece bastante para ser absorvido, mas que há como desenvolver estratégias para lidar com essas questões. Uma comparação feita por ela é com os movimentos de justiça social, em especial o que se preocupa com a pauta de imigração, que conseguiu levar a consciência sobre privacidade digital, proteção de dados e vigilância estatal para suas práticas, o que também pode ocorrer com o movimento da justiça reprodutiva.

Criptografia e gênero: a criptografia como ferramenta de proteção feminina 

É aí que entram as medidas que podem ser tomadas para proteger as comunicações digitais e evitar as perseguições aqui expostas. E a criptografia é uma grande aliada para garantir a privacidade e a liberdade de expressão das pessoas, como nós defendemos há muito tempo. Estudos vêm demonstrando que o acesso a comunicações encriptadas é uma questão de direitos humanos na era digital. A criptografia de ponta-a-ponta torna as mensagens, chamadas telefônicas e chamadas de vídeo ininteligíveis para todos, exceto para aqueles dispositivos envolvidos na comunicação, de forma que intrusos não possam acessar o que está sendo dito, nem mesmo a empresa que oferece a plataforma. À medida que o clima político se modifica, seja aqui no Brasil, seja nos EUA, as pessoas passam a perceber, ou pelo menos deveriam, que não cabe mais aquela desculpa de “eu não tenho nada a esconder”.

Do ponto de vista de proteção de direitos humanos e de minorias, a criptografia exerce um papel importante justamente nesses casos em que grupos sociais e ativistas passam a ser perseguidos, quando suas comunicações precisam ainda mais de proteção. É certo que, além da proteção à privacidade e à liberdade de expressão, a criptografia também possibilita o exercício de direitos à associação e à reunião, na medida em que esses grupos sociais e/ou ativistas podem formar grupos, através de aplicativos de mensagem ou listas de emails, por exemplo, com a segurança que a situação necessita e, assim, trocar informações com um risco muito reduzido de vazamento ou interceptações.

Como a pesquisadora Cynthia Conti-Cook reflete em seu artigo, sobre possíveis usos de dispositivos e contas serem usados como evidências em investigações criminais, antecipar essas situações pode ser desafiador e até assustador. E, na tentativa de fazer essa antecipação, não há a necessidade de saber como a criptografia funciona, mas saber como ela pode ser útil para evitar que esses dados fiquem disponíveis e, para isto, verificar se ela está ativada para todos os dispositivos utilizados na comunicação, sejam eles celulares ou computadores. A criptografia de disco ajuda a proteger todas as informações armazenadas no dispositivo, de forma que pessoas não autorizadas não teriam acesso ao conteúdo dessas informações.

No mesmo sentido, é recomendável passar a comunicar-se apenas por meios criptografados, como aplicativos de mensageria instantânea que adotam a criptografia forte por padrão. Isso ajuda a garantir que terceiros não autorizados não tenham acesso ao conteúdo das mensagens ali trocadas. É importante também a noção de que quanto mais pessoas se utilizam da criptografia, mais forte esse uso se torna, pois a cultura de proteção das comunicações passa a ser difundida, assim gerando um efeito de proteção à coletividade. Quanto mais usarmos essa proteção nas comunicações, mais estaremos protegidas, portanto.

Conclusão 

Como argumentado por Riana Pfefferkorn, especialista em política de criptografia e pesquisadora do Stanford Internet Observatory, um dos resultados práticos da derrubada do julgado Roe v. Wade é a criação de um novo divisor de águas ou teste decisivo para políticos, empresas, governos e todos aqueles que se identificam como pró-escolha: eles devem apoiar a criptografia forte. De acordo com Pfefferkorn, não é mais possível ser pró-escolha e anti-criptografia.

Quando implementada corretamente, a criptografia de ponta-a-ponta é uma garantia que vai além das políticas da empresa, controles internos ou regimes legais destinados a impedir o acesso indevido aos dados. A sua adoção dá força técnica às expectativas de privacidade dos usuários em suas conversas, movimentações e interações digitais de uma maneira que nenhum documento de política seria capaz. É por isso que a criptografia forte é tão crucial: ela protege a privacidade de nossas conversas onde a lei falha, sobretudo para os casos envolvendo direitos reprodutivos. 

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