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Por André Ramiro

Violações a direitos como o acesso à informação, liberdade de manifestação e sigilo das comunicações vêm colocando cidadãos russos e ucranianos em situação crítica no contexto da guerra. A criptografia ressurge, no entanto, como elemento necessário a um movimento de retomada de direitos políticos em ambos os países.

A forma como as forças policiais e bélicas russas têm fragilizado direitos de cidadãos no contexto da guerra com a Ucrânia vem sendo amplamente documentada. Não somente nos campos de batalha, mas também em forma de violação a direitos interligados ao uso de meios de comunicação e informação, incluindo a censura de notícias sobre a guerra e a vigilância sobre o tráfego de dados. Isso se aplica a cidadãos ucranianos, alvos de ações sobre sua infraestrutura de comunicação, mas também a cidadãos russos, que encontram-se sob rígidas regras para o uso da Internet no país.

O leque de arbitrariedades é amplo: a repórter russa Anya Vasileva vem documentando a abordagem de autoridades policiais a cidadãos em Moscou e o acesso irrestrito a seus smartphones, afastada e negligenciada qualquer necessidade de mandado judicial, em busca de “mensagens suspeitas”. Isso ocorre logo após Vladimir Putin ter aprovado Lei que pune quem “espalhar informações falsas” (visto por muitos como um nível inédito de censura), restringindo o uso de palavras como “guerra”, “invasão” e tendo detido mais de 15.000 manifestantes em 151 cidades, segundo o OVD-News, grupo russo independente e defensor dos direitos humanos no país. Um cenário de moderação de conteúdos generalizada que busca criar uma bolha política no país, controlar a narrativa e bloquear relatos sobre a guerra.

Não é de hoje que o acesso à informação e a liberdade de expressão e manifestação é esvaziada frente à política de moderação de conteúdo exigida pelo governo russo. Plataformas de busca, como o Google e o YouTube, receberam mais de 123.000 pedidos de retirada de conteúdo e/ou bloqueio de resultados de busca entre 2011 e 2020 – mais do que a soma de todos os demais países combinados – além de multas milionárias a redes sociais por não cumprirem com as regras de retenção de dados de usuários russos (levando ao encerramento do LinkedIn no país). Durante a guerra com a Ucrânia, além da campanha para remoção de conteúdos relacionados à invasão – que resultou em ordens judiciais de banimento de plataformas como o Instagram e o Facebook por alegarem que a Meta seria uma empresa “extremista” por permitir postagens críticas à Rússia – o país vem copiando redes sociais ocidentais e  disponibilizando-as internamente, sob gestão de empresas controladas pelo Estado.

Já em território ucraniano, acredita-se que algumas razões motivam a Rússia a não derrubar as redes de provimento de Internet e telefonia – entre elas a possibilidade de que serviços de inteligência russos possam monitorar ligações telefônicas e o tráfego de dados para acessar e-mails, geolocalização e o fluxo de outros metadados de militares e civis. Atualmente, falar em “guerra híbrida” envolve, fundamentalmente, a operação de meios de vigilância sobre as comunicações e fluxo de dados ocorridos em território adversário.

Some-se a isso o arranjo regulatório que a administração de Putin estabeleceu para a comercialização e uso de protocolos de criptografia no país, uma clara limitação ao uso massificado de meios de comunicação suficientemente seguros para não permitir o dissenso político. Segundo o “World Map of Encryption Laws” mantido pelo Global Partners Digital, para distribuir, manter, prover e desenvolver serviços criptográficos, é necessário obter uma licença governamental, podendo o Federal Security Service compelir a concessão de qualquer informação necessária à decriptação de mensagens. Seu modelo de responsabilização de provedores de serviços com criptografia também esvazia a possibilidade de crítica à guerra e às demais políticas domésticas e internacionais, impedindo o exercício da cidadania e da democracia no país.

Criptografia enquanto salva-vidas

Como resultado, civis russos e ucranianos, incluindo grupos ativistas e movimentos sociais, vêm buscando resgatar meios tecnológicos, entre infraestruturas e serviços, que permitam certo grau de sigilo a comunicações e, consequentemente, maior empoderamento para a expressão de dissidentes e acesso à informação sobre a guerra. Naturalmente, grande parte desses meios carregam elementos criptográficos como recursos básicos para assegurar os direitos de seus usuários, o tráfego de dados íntegro e driblar a vigilância e restrições sobre o acesso aos meios de informação e comunicação.

O uso de VPNs, por exemplo – redes virtuais privadas, que possibilitam a criação de um “canal” seguro, criptografado, para o tráfego de dados, impedindo que um intermediário saiba o conteúdo de determinada comunicação –  tem crescido entre os russos, uma vez que a propaganda governamental tem predominado em noticiários nacionais. Da mesma forma, VPNs têm ajudado jornalistas e críticos à guerra a superar o monitoramento de mensagens e filtros de moderação de conteúdo para se conectar a redes sociais e se comunicar com veículos de mídia internacionais, amigos e familiares fora do país. Durante a primeira semana da guerra, foi percebido um pico de downloads de VPNs em lojas de aplicativos como a App Store (Google) e Apple Play (Apple).

O bloqueio de aplicações a usuários russos também foi motivação para que redes sociais, como o Twitter, inaugurassem versões de seus serviços em domínios .onion, acessível por navegadores específicos que garantem o anonimato do usuário, como o Tor Browser. O funcionamento do Tor, um dos serviços mais exemplares de Internet anti-censura e conhecido por ser utilizado globalmente por grupos políticos perseguidos em regiões de tensão política, se dá através do ofuscamento da localidade do acesso a partir consecutivas camadas de encriptação ao tráfego de dados. 

A busca por aplicativos de mensageria privada com criptografia forte também tem sido uma tendência entre ucranianos que temem que as forças russas estejam operando o monitoramento de comunicações no país. Aplicativos como o Signal e WhatsaApp estão entre os mais baixados, serviços reconhecidos por implementarem criptografia ponta-a-ponta (apenas emissor e destinatário das mensagens têm acesso ao conteúdo, afastando o intermediário do serviço) por padrão mundialmente. A busca é plenamente justificável dado o efeito inibidor sobre as pessoas provocado pela possibilidade de vigilância sobre as comunicações e dadas as ameaças à cibersegurança na Ucrânia. Aplicações de criptografia ponta-a-ponta, portanto, estão na linha de frente na manutenção do potencial de comunicação do povo ucraniano. 

Curiosamente, a aplicação de comunicação privada número um na Ucrânia é o Telegram, com notável crescimento no número de usuários. No entanto, são conhecidas as deficiências do Telegram do ponto de vista da segurança, sendo alvo de críticas de especialistas em segurança sobretudo por não implementar criptografia ponta-a-ponta por padrão – o que significa dizer que o conteúdo das mensagens da grande maioria de seu usuários está sujeita à coleta e retenção por parte do provedor. As motivações em torno da busca pelo Telegram parecem se associar mais estreitamente com a oposição que a plataforma tem feito ao governo Putin – sugerindo uma aproximação de natureza política quanto ao antecedentes do Telegram – bem como com um fator contextual diante da formação de comunidades já bem estabelecidas em grupos na plataforma.

O caráter ponta-a-ponta e descentralizado sobre o acesso a formas de encriptar comunicações é o que faz da criptografia de chave pública (modalidade em que qualquer um pode ter acesso à chave de encriptação, disponibilizada publicamente, e apenas partes autorizadas têm acesso à chave de decriptação) tão revolucionária: disponibilizados democraticamente na rede, empoderam cidadãos em situações extremas de transgressões estatais sobre os direitos individuais e coletivos. O papel das plataformas de mensageria para popularizar esse modelo é mais evidente do que nunca diante da guerra.

Conclusão

Em outras palavras, o esvaziamento de direitos promovido pela ideologia da administração russa em políticas de comunicação e Internet se reflete tanto domesticamente quanto em suas relações internacionais, mais notadamente em relação à Ucrânia. E a criptografia se mostra como elemento transversal para resistir a tendências antidemocráticas que, efetivamente, resultam em perdas que vão além da privacidade, da proteção de dados e da liberdade de expressão, mas afetam a integridade física, o território e a vida de coletividades. 

A metáfora bélica tem acompanhado a criptografia, pelo menos, desde a década de noventa, no que se convencionou chamar de Crypto Wars  – ou guerras criptográficas, o embate histórico sobre se haveria necessidade de formas excepcionais de acesso a conteúdos encriptados. No entanto, à medida que tensões geopolíticas passam a compor o horizonte tecnológico, o uso de criptografia passa a fazer parte, de forma cada vez mais arraigada, da resistência a combates armados, inaugurando novas e mais literais dimensões às criptoguerras. 

Essa conjuntura já traz a resposta à pergunta acima: a existência de formas de acesso excepcional às comunicações trafegadas é o que serve de gatilho para o aumento na busca de soluções que garantem mais robustos níveis de segurança. Por isso, o quadro narrado ilustra a necessidade de reafirmação dos atributos centrais da criptografia para fortalecer a autenticidade, sigilo e integridade das informações. Um arranjo ideal desses atributos, como vêm buscando civis ucranianos e russos, tem o condão de preservar direitos humanos cada vez mais dependentes de redes conectadas à Internet.

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