Débora Torres e Raquel Saraiva são do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec)
Raquel Saraiva
O fato da criptografia ser uma ferramenta que conseguiu comprovar sua efetividade na proteção da privacidade e proteção de dados no ambiente digital é indiscutível. Nas últimas décadas, essa técnica, que procura conferir maior segurança às comunicações, assume um papel cada vez mais protagonista e basilar quando se trata da defesa dos direitos humanos na esfera digital, além de ser necessária para concretização da Internet livre e aberta, considerando que, atualmente, a Internet é um dos principais meios de acesso à informação, sendo relevante para diversas esferas da sociedade, entre elas, a jornalística.
O jornalismo, enquanto atividade fundamental para a promoção da democracia, apresenta-se como um setor que se utiliza cada vez mais da Internet e das redes sociais para amplificação do seu alcance. Quando este trabalho não dispõe de meios para o exercício do anonimato sempre que necessário, meios estes representados, entre outras ferramentas, pela criptografia, ele se torna inseguro e de difícil execução. Dessa forma, a proteção à liberdade de imprensa significa, em amplo aspecto, a proteção dos direitos humanos, visto que a criptografia é uma ferramenta que pode amparar a liberdade de expressão, o acesso à informação, a privacidade, além de proteger as comunicações e, quando necessário, promover o anonimato.
E é nesse ponto que os dois caminhos se encontram: a criptografia como ferramenta que promove, entre outros direitos, a liberdade de imprensa, fortalecendo a atividade jornalística, e, consequentemente, a democracia. Dessa forma, a organização Repórteres sem Fronteiras atesta esse entendimento, considerando a liberdade de imprensa como “a possibilidade efetiva dos jornalistas, como indivíduos e como coletivos, selecionarem, produzirem e divulgarem informações de interesse geral, independentemente de interferências políticas, econômicas, jurídicas e sociais, e sem ameaça à sua segurança física e mental.”
No contexto brasileiro, o cenário da atividade jornalística é alarmante e acompanha a tendência mundial de perseguição à imprensa. Atualmente, o Brasil ocupa o 110º lugar, entre 180 países analisados, no ranking mundial da liberdade de imprensa da organização Repórteres sem Fronteiras. A organização destaca que “as relações entre o governo e a imprensa se deterioraram significativamente desde a chegada ao poder do presidente Jair Bolsonaro, que ataca regularmente jornalistas e a mídia em seus discursos” (…) “A violência estrutural contra jornalistas, um cenário midiático marcado pela alta concentração privada e o peso da desinformação representam desafios significativos para o avanço da liberdade de imprensa no país.”
Ainda no mesmo sentido, a Freedom House, organização que analisa anualmente o grau de liberdade de expressão em 210 países e territórios no relatório “Liberdade no mundo”, classificou o Brasil, em 2021, como parcialmente livre em relação à liberdade na Internet, com nota 64/100. Um dos pontos de atenção para a organização é de que os jornalistas que criticam o presidente Bolsonaro sofrem assédio online e offline e os veículos que publicam tais críticas enfrentam pressões econômicas do governo.
No relatório “Violência contra jornalistas e liberdade de imprensa no Brasil”, publicado em 2022, a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), relata que, em 2021, o número de agressões a jornalistas e a veículos de comunicação bateu novo recorde, desde o começo da série histórica dos registros feitos pela entidade, iniciada a década de 1990. Foram relatados 430 casos, dois a mais que os 428 registrados em 2020. A publicação destaca ainda que o presidente Jair Bolsonaro, assim como nos dois anos anteriores, foi o principal agressor, sendo responsável por 147 casos (34,19% do total), dos quais 129 foram episódios de descredibilização da imprensa (98,47% da categoria) e 18 de agressões verbais a jornalistas.
Nesse contexto de violência notória, a criptografia pode não apenas atribuir a concretização de direitos dessa comunidade, mas também auxiliar na proteção da vida dos próprios jornalistas. Em 2015, relatório do relator especial da ONU para a Liberdade de Expressão, David Kaye, destacava que as tentativas de proibir ou interceptar comunicações anônimas configura uma restrição injustificada do direito à liberdade de reunião pacífica previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos e no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, recomendando que a legislação que protege defensores dos direitos humanos e jornalistas deve incluir disposições que permitam o acesso a promoção do uso de tecnologias que protejam suas comunicações, como a criptografia.
Recomendação semelhante é feita pela Internet Society, ao afirmar que se jornalistas não podem se comunicar em confiança com colegas e fontes, eles não podem fazer o seu trabalho de forma segura. Considerando que eles frequentemente trocam informações incriminatórias sobre uma instituição ou figuras públicas, a criptografia de ponta-a-ponta ajuda a construir essa relação de confiança com essas fontes, já que a ferramenta criptográfica vai proteger o sigilo dessa troca de informações independentemente do provedor dos recursos de comunicação.
É válido pontuar que, além dessas recomendações internacionais acerca do tema, a nossa Constituição, em seu art. 220, dispõe sobre o direito à manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, e afirma que essas atividades não sofrerão qualquer restrição. Mas, a nossa realidade apresenta um cenário bastante controverso: até mesmo o Chefe do Poder Executivo se apresenta como um inimigo da imprensa, sendo um dos principais agressores de sua liberdade e do devido acesso à informação, necessário para formar o senso crítico da população.
Sendo assim, é notório como a liberdade de imprensa não é um direito plenamente respeitado no Brasil e que carrega, em contraposição ao seu exercício, acima de tudo um combate político, combate este que se forma também, constantemente, contra uma das principais ferramentas de proteção aos direitos no âmbito digital, a criptografia. Esse instrumento de relevante valor técnico, mas também de relevante valor sócio-jurídico, apresenta-se como indispensável para o exercício de direitos humanos, para a concretização de uma Internet livre, além da proteção das comunicações da sociedade em geral, não apenas no âmbito jornalístico.
Atualmente, com toda a expansão da Internet e o crescimento da imprensa nesse meio, o discurso anônimo é necessário não só para defensores dos direitos humanos, manifestantes sob pressão on-line, mas também para jornalistas, e a encriptação é a ferramenta que pode fortalecer essa proteção no ambiente online. O anonimato e o sigilo das comunicações é uma condição essencial para que jornalistas protejam suas fontes e todos os demais atores envolvidos na atividade da imprensa, principalmente no meio digital, que carrega consigo riscos muito mais amplos, envolvendo terceiros mal intencionados, possibilidades de censura por parte do governo, de interceptação das comunicações, entre outras ameaças nociva ao exercício democrático. Portanto, a criptografia é uma ferramenta legítima e essencial para a proteção da liberdade de imprensa.