A Aliança para a Criptografia na América Latina e Caribe – AC-LAC, coalizão multissetorial formada por cerca de 40 entidades e empresas, vem a público expressar sua preocupação com o julgamento, no Brasil, das ações no Supremo Tribunal Federal que se relacionam com o uso da criptografia e que tiveram origem a partir de ordens judiciais de bloqueio do aplicativo WhatsApp no país. Na ADI 5527 está em jogo a interpretação das sanções aos provedores de aplicação e conexão previstas no Marco Civil da Internet (MCI), como “suspensão” e “proibição” dos serviços. Já na ADPF 403 o que se propõe é o estabelecimento de um precedente que afirme que os bloqueios de aplicativos, como no caso do WhatsApp, violam os direitos fundamentais à comunicação, à liberdade de expressão e de associação da coletividade.
BREVE HISTÓRICO DOS BLOQUEIOS AO WHATSAPP NO BRASIL
Entre 2015 a 2016, quatro ordens de bloqueio foram realizadas contra o serviço de mensageria WhatsApp, das quais três foram executadas. Todas foram emitidas por juízes de primeira instância, que, com suas decisões, afetaram usuários do Brasil e países vizinhos na América Latina.
A primeira decisão, em 2015, que não veio a ser executada, foi emitida pelo juiz Luiz de Moura Correia, da Central de Inquéritos de Teresina (Piauí), em investigação sobre abuso sexual infantil. Empresas provedoras de acesso à Internet, alvos da ordem de decisão do bloqueio, entretanto, entraram com mandados de segurança, que foram aceitos em segunda instância.
No mesmo ano, a juíza da 1ª Vara Criminal de São Bernardo do Campo, Sandra Regina Nostre Marques, ordenou o bloqueio do aplicativo pelo descumprimento de ordem de interceptação telemática de mensagens de três investigados, o que foi cumprido pelas empresas provedoras de acesso à Internet. O WhatsApp, por sua vez, entrou com mandado de segurança alegando, entre outros argumentos, violação ao Marco Civil da Internet e ao Decreto nº 3.810/2001.
O terceiro bloqueio contra o aplicativo de mensageria foi emitido por um juiz da Vara Criminal de Lagarto, Marcel Maia Montalvão, em maio de 2015. A ordem, solicitada pela Polícia Federal, deu-se em virtude da não realização de uma interceptação em tempo real no serviço de mensageria. Após um mandado de segurança da empresa, a ordem de bloqueio foi suspensa.
O último caso de bloqueio que ocorreu junto ao WhatsApp foi registrado em 2016. Também por descumprimento de entregas de dados criptografados, o serviço de mensageria foi bloqueado por ordem judicial 2ª Vara Criminal de Duque de Caxias (Rio de Janeiro), Daniela Barbosa Assumpção de Souza. A medida, entretanto, foi suspensa pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski.
BLOQUEIOS CHEGAM AO STF: ADPF 403 e ADI 5527
Frente aos bloqueios, duas ações foram protocoladas no Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro. A primeira foi a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 403, com relatoria do Ministro Edson Fachin, de autoria do Partido Popular Socialista (PPS). Na visão do PPS, o bloqueio do WhatsApp viola o preceito fundamental da liberdade de comunicação, previsto no art. 5º, inciso IX, da Constituição Federal.
A segunda foi a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5527, de relatoria da Ministra Rosa Weber. A ADI tem como requerente o então Partido da República (PR) e questiona a constitucionalidade de artigos do Marco Civil da Internet. Como objetos da ação, constam o art. 10º, parágrafo 2; e art 12º, incisos III e IV do Marco Civil da Internet.
INÍCIO DO JULGAMENTO E PEDIDO DE VISTAS
O início do julgamento da ADPF 403 e ADI 5527 se deu entre os dias 27 e 28 de maio de 2020, com os votos dos relatores. No voto da Ministra Rosa Weber na ADI, a relatora concluiu que os incisos III e IV do art. 12 do MCI não são inconstitucionais. No voto da ministra, pontuou-se a necessidade de garantir a privacidade dos cidadãos brasileiros, inclusive por meio da garantia de criptografia forte, como forma de promover a segurança da comunicação, principalmente em ambientes não democráticos. Da mesma maneira, trata-se de importante ferramenta para segurança de transação econômica. Destacamos de sua arguição:
Uma vez desenvolvida e adotada por ele, um particular, tecnologia voltada a garantir a segurança e a privacidade de comunicações, e oferecida essa tecnologia, como valor agregado, a outros particulares que contratam seus serviços, não pode o Estado compeli-lo a oferecer um serviço menos seguro e vulnerável, sob o pretexto de que pode vir, eventualmente, a utilizar essa vulnerabilidade artificial, para cumprir ordem judicial a respeito. Isso significaria tornar ilegal a criptografia, ou pelo menos alguns de seus usos.
De modo similar, o emprego da criptografia de chave pública confere segurança e privacidade às comunicações efetuadas por meio de redes abertas ao acesso de todos. Seria um inadmissível contrassenso, e mesmo retrocesso, tornar ilegal ou limitar dessa maneira o uso de criptografia
Além disso, a difusão da criptografia também tem garantido a segurança da comunicação de grupos de direitos humanos e indivíduos que se mobilizam contra regimes opressivos ao redor do mundo. (WEBER, 2020)
No julgamento da ADPF 403, o voto do relator, Ministro Edson Fachin, seguiu em concordância com o entendimento de garantia ao uso de criptografia, mas também que “os direitos que as pessoas têm offline também devem ser protegidos online” (FACHIN, 2020) – sendo assim, garantido o direito à privacidade e à liberdade de expressão dos cidadãos brasileiros. Em sua manifestação, o relator destacou em os seguintes pontos:
A criptografia é, portanto, um meio de se assegurar a proteção de direitos que, em uma sociedade democrática, são essenciais para a vida pública.
A segunda [conclusão] é a de que todos os órgãos de Estado, assim como a sociedade civil, reconhecem que a criptografia protege os direitos dos usuários da internet, garantindo a privacidade de suas comunicações, e que, portanto, é do interesse do Estado brasileiro encorajar as empresas e as pessoas a utilizarem a criptografia e manter o ambiente digital com a maior segurança possível para os usuários. Essa premissa é evidenciada tanto pela manifestação dos peritos da Polícia Federal que participaram da audiência pública e quanto da Associação de Magistrados Brasileiros: a internet segura é direito de todos.
É contraditório, portanto, que em nome da segurança pública deixe-se de promover e buscar uma internet mais segura. Uma internet mais segura é direito de todos e dever do Estado. Medidas que, à luz da melhor evidência científica, trazem insegurança aos usuários somente se justificam se houver certeza comparável aos ganhos obtidos em outras áreas. Não é isso, porém, o que ocorre. O risco causado pelo uso da criptografia ainda não justifica a imposição de soluções que envolvam acesso excepcional.
Em síntese, é inconstitucional proibir as pessoas de utilizarem a criptografia ponta-a-ponta, pois uma ordem como essa impacta desproporcionalmente as pessoas mais vulneráveis. (FACHIN, 2020)
Após os votos dos relatores, o Ministro Alexandre de Moraes solicitou vistas dos processos, adiando o julgamento do mérito. Frente ao debate de regulação de plataformas no Brasil, entretanto, o julgamento será retomado três anos depois, no dia 17/05/2023, com o voto de Moraes, seguido pelos demais ministros.
CRIPTOGRAFIA PARA GARANTIA DE DIREITOS E UMA INTERNET SEGURA
Os votos já proferidos apontam para uma direção em concordância com especialistas em segurança e tecnologia, assim como em juristas e organizações especializadas nas políticas e dinâmicas legais da Internet. É essencial que os demais ministros considerem a importância da criptografia para a proteção da segurança nacional dos Estados latinoamericanos e para a segurança do tráfego de dados e o funcionamento de infraestruturas e serviços críticos na região, como é o caso de meios de comunicação, o mercado financeiro, fornecimento de energia à região e serviços hospitalares.
O que está em jogo com os bloqueios e, consequentemente, no julgamento no STF é a utilização de criptografia ponta-a-ponta em serviços de mensageria e um possível enfraquecimento da tecnologia para viabilizar o acesso ao conteúdo das comunicações no curso de investigações criminais.
A solicitação de interceptação de mensagens ao Whatsapp, atualmente, é uma medida tecnicamente inviável, visto que a empresa, graças à utilização de criptografia, não tem acesso ao conteúdo das mensagens dos usuários, garantindo a privacidade das comunicações e integridade dos dados das mensagens. O retorno do julgamento no STF vem em um momento crítico sobre regulação de plataformas no Brasil, que pode, entre outros aspectos, impactar a utilização de criptografia forte no país e na região latinoamericana – não apenas pelo WhatsApp, mas por qualquer serviço que a utiliza. Nessa conjuntura, cabe entoar o entendimento seguindo os votos anteriores, de que a criptografia é essencial para a garantia de direitos e para uma Internet segura para todos.
APOIAM ESTA NOTA:
Aliança para Criptografia na América Latina e Caribe – AC-LAC
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Colnodo – Colombia
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